quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Cartas à Sofia #2

Querida Sofia,
Os dias continuam muito cinzentos e de chuva. Dizem os livros que por esta altura já tens sensibilidade à luz do mundo externo, mas com dias tão escuros não te deves preocupar com isso.
O teu pai sonhou esta semana que te tínhamos colocado nos escuteiros com 2 meses. Imagina. E que ele estava conduzir para te irmos ver ao acampamento.
Eu fui fazer o exame da glicose, aquele que muitas mães se queixam que não conseguem e dizem que o sumo é insuportável. Correu muito bem. Devo dizer-te que o sumo de laranja (podia escolher laranja ou limão) era bastante agradável e que consegui estar 3 horas no hospital a tirar sangue de hora a hora. Amanhã já levanto os exames e vamos ver os resultados.
Continuamos muito ocupados na nossa vida. O teu pai preocupado com a casa que estamos a construir. Dá muitas dores de cabeça, sabes? Todos os dias aparece uma chatice, uma decisão que temos de tomar, uma reunião. Dias nada fáceis. Eu continuo no mandarim e ontem tive um teste surpresa. Parece coisa de miúdos, não parece? Na segunda feira é teste a sério.
Às vezes, muitas vezes, sinto-me culpada por não te dar aquela atenção que talvez precisasses. Por não falar contigo quando dizem que devemos falar. Por não ter a loucura das mães que leio que vivem os dias a comprar roupas e roupinhas, vestidinhos, lacinhos. De basicamente te ter apenas comprado um pijaminha (tudo o resto ou é feito ou comprado pela tua tia Inês ou avó Isabel). De não tirar fotografias à barriga que está tão grande. De não fazer sessão de grávida e outras tretas que entretanto vão inventando neste mundo da gravidez. Talvez porque algumas coisas ache uma treta. Deve ser isso.
Dizem que tenho uma barriga muito bonita. Que estou igualmente bonita. E que nem ando à grávida nem nada (vá lá saber o que significa J).
Para a semana faço 35 anos. Não gosto de fazer anos. Não pela idade, mas pelo dia em si. Não gosto dos imensos telefonemas, dos imensos beijinhos, da imensa atenção. Quero sempre que o dia passe bem rápido. Sou assim, não sei porquê. Gostava de ser diferente. Mas na verdade não consigo.
Ainda falta mais de uma semana para te vermos outra vez naquele ecrã que aprendemos a decifrar. Para vermos o teu peso, a tua altura, os teus órgãos, os teus ossinhos. Para confirmarmos que estás a crescer bem e saudável.
Daqui a pouco a casa enche-se com o espírito de Natal. Este ano, apesar de ainda não te termos nos braços, vamos colocar 3 meias na árvore. Quem sabe o Pai-Natal não te vai deixar lá uma prendinha!

terça-feira, 18 de novembro de 2014

340 m2 de Filosofia e berbicachos

Tomada a decisão de construir uma casa, demos início à exigente tarefa de escolher um arquitecto que a desenhasse. Uns meses mais tarde percebemos que deveríamos ter começado o processo por outro lado, mas essa história fica para depois. Ludwig Wittgenstein, filósofo habituado aos mais complicados conceitos físicos e metafísicos, ocupou uns anos da sua vida a construir uma casa em Viena. No final afirmou sem reticências: “consideram que a Filosofia é difícil mas digo-vos que ela não é nada quando comparada com a dificuldade de ser um bom arquitecto”. Não querendo ir tão longe (experimentem ler um texto de Wittgenstein para ver o que é bom para a tosse), concordo que a tarefa é espinhosa. Lembremo-nos que a função de um (bom) arquitecto não é apenas tratar da arquitectura mas coordenar todos os projectos necessários, a maioria dos quais da responsabilidade de outros expertos (engenheiros, normalmente; todos expertos mas nem todos espertos). Não adianta desenhar uma casa muito bonita para depois descobrir que, com aquela disposição das assoalhadas, os canos do cocó, do xixi e do vomitado do filho adolescente teriam de atravessar a mesa de jantar. Ou que a chaminé da lareira teria de ficar encostada aos pés da cama do mais novo. Assim de memória, consigo lembrar-me de uma boa dúzia de projectos (ditos de especialidade) que passeiam comigo diariamente entre a casa onde vivemos, o escritório onde trabalho e a casa que estamos a construir: o projecto de estabilidade, o projecto de águas pluviais, o eléctrico, o térmico, o de saneamento, o projecto de ventilação, o projecto da rede de gás, e não continuo para não vos maçar. Até o “barraco” onde vão estar os recipientes para separação do lixo precisa de um projecto autónomo. E no âmbito da arquitectura propriamente dita, para além daqueles desenhos que todos conhecem (plantas, alçados, cortes), há dezenas de folhas com pormenores de portas, grades, chaminés, tectos, rodapés, espelhos, armários, portões, casas de banho, etc., etc., infinitos etc. Só faltou que me medissem o rabo para definir o formato das sanitas. Coordenar e conjugar tudo isto é do caraças, e “caraças” não é exactamente a palavra que me apetecia utilizar.
O nosso método de “recrutamento e selecção” de um arquitecto foi, inicialmente, de uma racionalidade quase científica. Era necessário encontrar um profissional que confiasse nas suas capacidades mas que estivesse disponível para ouvir as nossas ideias; imaginativo mas que não comprometesse o indispensável pragmatismo; que tivesse dotes de artista mas sem os caprichos dos artistas; que fosse requintado na escolha dos materiais mas que tivesse a capacidade de encaixar um “não” caso os requintes se mostrassem demasiado dispendiosos. Em resumo, que fosse muito bom mas não tão bom que nos levasse à falência. Eram estes os critérios teóricos que tínhamos à partida; na prática, a escolha do arquitecto foi feita de acordo com o mesmo método que utilizamos em muitas outras decisões das nossas vidas não relacionadas com a construção civil, da compra de um cavaquinho novo à contratação de uma mulher-a-dias: falar com amigos e conhecidos para sacar referências, e siga.       
O terreno que já tinha feito parte de um campo de cultivo comprado por uns contos de réis ganhos na Venezuela pelo avô apresentava algumas condicionantes a ter em conta. Oferecia-nos desafios interessantes, como gostam de dizer aquelas pessoas dinâmicas, optimistas e com atitude vencedora, entre as quais, infelizmente, não me incluo. Para mim aquilo eram mesmo berbicachos. Em primeiro lugar era relativamente pequeno, cerca de 340 m2 de área total. Tinha também uma área de implantação autorizada que era, à falta de uma palavra mais simpática, ridícula. Por último, sendo destinado a uma casa com 3 pisos, em utilizando a distribuição usual (garagem na cave, zona social no rés-do-chão, quartos no 1º andar), obrigava a uma rampa de acesso automóvel muito acentuada. Refiro-me a um daqueles declives em que quando vamos a sair só vemos a frente do carro e o céu. Sim, uma daquelas subidas que as senhoras fazem em alta velocidade para não correrem o risco do automóvel parar a meio e terem de aplicar o temido ponto de embraiagem, ponto que demoram quase tanto tempo a descobrir como o que os homens precisam para encontrar o ponto G (brincadeira, brincadeira… a Andorinha é uma excelente condutora). Mas adiante. O primeiro berbicacho não tinha solução, o terreno não esticava; o segundo foi resolvido a troco do pagamento de umas centenas de euros em taxas, promovendo uma alteração do loteamento junto da respeitosa Câmara Municipal; a maneira como se resolveu o problema dos declives fica para um outro capítulo. Até à próxima, se Eu quiser.

Andorinho               
 
 
 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Cartas à Sofia #1

Querida Sofia,
 Os teus pais têm andado muito atarefados com a casa que estão a construir e para onde iremos morar quando tiveres uns 5 ou 6 meses. Até lá, vamos viver os 3 no conforto daquele apartamento virado para sul e poente.
A tua mãe decidiu inscrever-se no mandarim e, 2 vezes por semana, sai do emprego e fica a aprender uma nova língua até às 22h. Nesses dias chega a casa muito cansada, mas tem sempre o teu pai de braços abertos para a receber.
O teu pai divide-se entre o trabalho e reuniões com os especialistas. Carpinteiro, electricista, picheleiro, o senhor do aquecimento. Todos os dias de manhã, lá para as 8h, está na obra. Agora que a hora de Inverno se instalou, e o mau tempo com ela, não dá para fazer nada ao fim do dia.
Na terça-feira o teu pai diz que sentiu muito os teus pontapés à noite. Durante o dia também os sinto, principalmente depois de almoço.
Só te iremos ver numa nova ecografia no fim deste mês. Até lá, ainda vou fazer análises ao sangue e também umas muito chatas da glicose.
A tua tia Inês e a tua avó Isabel têm-te feito coisas tão bonitas. Tens vestidos de malha, casaquinhos quentinhos, fraldas e lençóis personalizados. E carapins, pequeninos, pequeninos.
Temos um berço branco e alguns bonecos a enfeitá-lo. No fim-de-semana estivemos a arranjar espaço naquele apartamento virado para sul e poente para colocar a tua roupinha. Alguma roupa nossa teve de ser dividida entre a casa da avó Catarina e a casa da avó Isabel.
As senhoras aqui do emprego dizem que estou uma grávida muito bonita, mesmo com estes quase 72 quilos.
Agora que te escrevo, e que ouço a música clássica que o teu pai me enviou, dás sinais da tua existência. E é bom sentir-te.
Irás trazer muita alegria às nossas famílias que será a tua família. Grande. Cheia de amigos, tias e tios, primos.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

No princípio era o Verbo e um terreno cheio de mato

 
 
No princípio era o Verbo e um terreno cheio de mato. Terreno que já tinha feito parte de um campo de cultivo, campo de cultivo que tinha sido comprado na década de 60 por uns poucos contos de réis, contos de réis que tinham sido ganhos na Venezuela, Venezuela que tinha sido o principal destino de grupos de homens daquela terra que ambicionavam uma vida melhor, grupos de homens aos quais se tinha juntado o meu avô.
Depois vieram os anos 80 e o tempo das vacas que sendo ainda magras nos parecem agora gordas. E a agricultura de subsistência deixou de estar na moda. Os campos que inundavam os arredores das grandes cidades pareciam pequenos para acolher todos os que fugiam do interior. Era preciso arrancar o milho para dar espaço às marcações dos topógrafos, deitar abaixo as vinhas para assentar os paralelos, desviar os ribeiros para construir os ramais da água, e as sarjetas, e os colectores dos resíduos da civilização. O campo de cultivo comprado pelo meu avô com os contos de réis ganhos a troco do suor deixado no solo de Caracas não resistiu ao espírito do tempo. Em breve estaria transformado, primeiro num projecto, depois num alvará de loteamento e, finalmente, numa urbanização com uma dúzia de lotes, alguns deles com destino marcado desde a primeira hora. Um constituiria o pagamento do arquitecto, outro o pagamento do empreiteiro; economia de troca directa no Portugal da CEE.
Ao longo dos anos venderam-se mais alguns, ficando sempre de reserva o espólio da herança. O meu avô era homem avisado, e as famílias felizes só são todas iguais até à altura das partilhas. Dos avós até aos netos, o título de propriedade do terreno da fotografia transferiu-se mais rapidamente do que seria desejável. E também, olhando para as estatísticas da esperança de vida, mais rapidamente do que seria expectável. Aguardaria de bom grado mais umas décadas pela invejada condição de “proprietário”, mas ainda não somos nós, seres humanos, os decisores destas matérias.
A vida num T2 é bastante prazenteira para um casal sem filhos. Não é demasiadamente pequeno para o sonho de um homem – ter um escritório onde possa estar sossegado – , nem demasiadamente grande para o sonho de uma mulher – ter a casa arrumada. Com crianças, tudo muda. Se for apenas uma, sacrifica-se o sonho do homem e o sonho da mulher e o assunto está resolvido. Se forem duas, sacrifica-se tudo, o assunto fica na mesma por resolver, mas tudo se consegue com “o amor”. Se forem três, cortam-se os pulsos. Mas depois voltam-se a coser, porque nas “ilhas” do Porto vivem mais pessoas em espaços mais pequenos. Adiante. Eu e a minha mulher, a minha mulher e eu, e vice-versa, resolvemos colocar o carro à frente dos bois e procurar casas maiores antes de nos dedicarmos à santa tarefa da procriação. Aliás, o carro ficou tão à frente dos animais que o puxam, que decidimos procurar casas antes até de perder 5 minutos no famoso exercício especulativo “quantos filhos queremos ter”! Como era de esperar, em pouco tempo estávamos numa encruzilhada: um T4 novo é muito caro, um T3 pode não chegar; se comprarmos um T4 usado e depois só tivermos um filho, vamos ficar arrependidos de não ter comprado antes um T3 novo; se comprarmos um T3 novo e depois tivermos dois filhos, vamos ficar arrependidos de não ter comprado antes um T4 usado; se comprarmos qualquer um dos dois e acabarmos por ter 3 filhos, lá se vai o escritório e os pulsos do homem. E foi assim, no meio destes dilemas, que surgiu a ideia de construir uma casa no terreno que já tinha feito parte de um campo de cultivo, e que tinha sido comprado por uns contos de réis, ganhos na Venezuela, pelo avô, em troca do suor…, etc., etc. É dessa aventura que vos vou falar nos próximos textos. Que serão publicados semanalmente, ou não. Que estarão acompanhados por fotografias, ou não. Que escreverei até a casa ficar pronta, ou não. E agora que vos deixei descansados no conforto das grandes certezas, despeço-me com amizade e com duas paletes de cimento-cola.
 
Andorinho               

terça-feira, 4 de novembro de 2014

porque nem só de fotos vive uma casa...

Como sabem, eu e o meu marido (a quem vou apelidar de Andorinho) estamos a construir uma casa. Uma senhora casa. Uma dona senhora casa.
Tenho tentado registar os vários momentos em fotografia. Desde o início de tudo, desde aquela primeira pedra que se atira, desde aquele campo de cultivo cheio de mato, borboletas, ratos e outros animaizinhos que tiveram de ir viver para outro sítio, que vou registando o quanto posso e quando posso.
Mas estava a faltar mais conteúdo. Quero com isto dizer, texto. Estava a faltar passar para o papel tudo aquilo que temos vivido ao longo deste mais de 1 ano.
Por isso, a com o contributo do meu marido, irei publicar amanhã o primeiro texto sobre a nossa aventura.
Vai valer mesmo a pena!